Com 500 mil famílias sem encanamento, RS tem 1,6 mil casas que dependem de caminhão-pipa - Rádio Vem que Tem

Com 500 mil famílias sem encanamento, RS tem 1,6 mil casas que dependem de caminhão-pipa

Famílias de 1,6 mil domicílios gaúchos vivem à espera do momento da semana em que um caminhão-tanque capaz de carregar 10 mil litros estacione à porta, posicione uma mangueira e jorre o líquido capaz de tornar a vida possível.

Esses 5.556 gaúchos sabem muito bem o significado da água: ela cai do céu, mas isso não a garante na torneira. 

Comparado aos demais estados brasileiros, o Rio Grande do Sul ocupa a 14ª posição no ranking de abastecimento por caminhão-pipa, segundo o censo de 2010 do IBGE. Uma média bem pior do que a de vizinhos como Santa Catarina, com 154 casas atendidas e Paraná, com 352. Os dados gaúchos são piores aos de Roraima, Tocantins, Acre e Amapá, entre outros.

É por medo de ficar sem água que Eva Leal Borges, 67 anos, respira aliviada quando escuta o caminhão-pipa chegando. Ela avista o motorista Odilon Martin, 43 anos, e o auxiliar Luiz Silveira, 50 anos, e eleva as mãos ao céu.

— Ah, graças a Deus! — exclama, lembrando que caso não chegassem, teria de mendigar com algum vizinho que tivesse poço artesiano.

Enquanto isso, os homens vão até a caixa-d’água na casa da empregada doméstica, na zona rural de Pelotas, no 5º distrito da cidade. Eles tiram uma mangueira do caminhão e levam até os fundos da casa, um grita “vai” e o outro libera os mil litros que abastecem ela e o marido por quase um mês. Não é uma situação de emergência, a casa de Eva não sofreu qualquer enchente, desabamento ou desastre natural que danificasse o encanamento. Não há encanamento. Tem privada, pia, chuveiro, caixa-d’água, mas não tem rede. Eva depende do caminhão-pipa para ter água.

E não é por falta de chuva. Para o vice-diretor do Instituto de Pesquisa Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Bulhões Mendes, os números seriam aceitáveis no nordeste do país, onde chove de 30cm a 50cm por ano, números bem inferiores aos 1,5 metro que pingam em solo gaúcho.

— O que existe é má gestão da água. Somos ricos em água, mas incrivelmente ela não é bem distribuída — explica Mendes.
Capital tem maior número de casas
No Brasil, em geral, das 300 mil casas com abastecimento exclusivo por caminhão-pipa, mais de dois terços estão no meio rural, caso de dona Eva. No Rio Grande do Sul, no entanto, a situação é inversa: das 1,6 mil famílias, apenas 378 se encaixam nessas condições. Na Capital – líder do ranking – todos os dias, mais de 100 mil litros de água viajam pelo menos 70 quilômetros em caminhões e fazem a vida de 707 pessoas (cerca de 0,5% da população da cidade) viável.

Márcio Rodrigues da Rocha, 32 anos, morador da Vila Santo André, na Zona Norte, é um deles. Na hora da entrega, carrega o que pode em galões para a casa que divide com a mãe, irmãos e outros parentes. Já aprendeu que a água para beber é melhor pegar direto do caminhão, pois os locais onde armazenam são contaminados.

Segundo especialistas, a maior concentração em meios urbanos se dá pela quantidade de famílias em áreas irregulares – situação dos Rocha –, de preservação permanente ou outras condições em que o Estado não poderia investir sem resolver a questão habitacional. 

– O carro–pipa deveria ser usado somente em situações de exceção. Em áreas urbanas, o ideal é ter encanamento. Como a água é um direito, obrigação do Estado fornecer, a prefeitura, a concessionária estadual ou a empresa privada contratada deveriam montar poços artesianos ou esquema de captação pluvial para garantir um abastecimento mais digno – explica o engenheiro sanitarista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Pacheco Jordão.

Sem encanamento, são mais de 500 mil famílias no Estado, o que representa 15% do total de famílias gaúchas. Além do caminhão–pipa, elas também se abastecem em poços artesianos, nascentes, cisternas ou até em rios e açudes. Para o governo, a solução não é colocar encanamento para todos, mas encontrar outras formas de levar água potável e de qualidade para a população:

— Pretendemos investir R$ 100 milhões nos próximos cinco anos para o problema da água estar resolvido. Isso inclui a perfuração de poços e novas estações de água — diz o secretário estadual de habitação e saneamento, Marcel Frison.

Economia na zona rural de Pelotas
Em Pelotas, no sul do Estado, as estradas empoeiradas que levam ao 5º distrito da cidade emolduram casas simples de filhos de imigrantes, que pela descendência tiveram a terra batizada informalmente de “Colônia”. A vida por lá florece de 15 em 15 dias quando um caminhão-pipa fornece água para 80 famílias que não têm poço artesiano. Outras 30 casas são abastecidas ocasionalmente por terem poços deficientes. 

— A água é toda aproveitada, a que eu lavo roupa vai para o vaso sanitário e para lavar o chão, porque não tem outra — revela Eva Leal Borges, 67 anos. 

O mil litros (um metro cúbico) mensais de Eva dariam para aproximadamente oito banhos de ducha com registro meio aberto e duração de 15 minutos. A água só é cobrada pela prefeitura quando excede 4 metros cúbicos, com custo de R$ 9 por metro cúbico adicional.


A Porto Alegre da água parada
No meio de uma das vilas mais pobres da Capital repousam três tanques capazes de receber cinco mil litros de água. Ao redor, um mar de lixo, assim como nas casas. A maioria dos moradores do lixo vivem e com ele convivem. É ali que todos os dias um caminhão do Dmae despeja a água que dezenas de famílias consomem.

Na Vila Santo André, de onde se vê a Arena do Grêmio, o volume de cada uma das três caixas-d’água comunitárias dura cerca de 30 minutos. É o tempo para que o líquido escorra por dezenas de canos acoplados na estrutura, percorra metros por mangueiras em péssimas condições e, por gravidade, ou com alguém sugando pela boca, vá para caixas-d’água a céu aberto dentro das casas. 

Do banho, uma vermelhidão na pele, causada provavelmente por alergias. Do consumo para saciar a sede, a leptospirose e a hepatite A, conhecida pela maioria das crianças. 

— Aqui, rato é como cachorro — diz Nilson Rodrigues da Silva, 52 anos. 

Márcio Rodrigues da Rocha, 32 anos, lembra o dia que um deles morreu dentro de um dos três tanques. 

Iracema Rodrigues da Rocha, 58 anos, mãe de Márcio, sabe que a atividade dos moradores torna a água um prato cheio para doenças.

– A gente lida com o lixo, sabemos que a água não é limpa – diz a senhora, que é soropositivo.

A água que os Rocha usam vem da caixa-d’água comunitária por uma mangueira que percorre metros dentro da lama. Cinco famílias dividem três caixas com água a céu aberto que serve para tudo: beber, banhar, lavar.

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